Estou
a parir meu filho pobre. Na maca onde a enfermeira impaciente empurra minha
barriga.
Me
livro da dor pensando em seu futuro:
De
uniforme e banho tomado ele desce a ladeira:
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Cuidado ao atravessar a rua! (Ele olha pra trás e sorri)
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Não esquece a merendeira hein filho? - Tá mãe!!
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Esteja bem vestido (para não te confundirem ... com ladrão).
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Não erga a cabeça pro polícia.
Vou
franzindo a testa e abaixo o tom de voz:
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Ande com carteira de Trabalho no bolso e apresente-a sempre que abordado.
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Se quiser ter o cabelo colorido, será confundido com bandido. Se quiser
homenagear seus ancestrais e fazer dreads e penteados, será chamado de
vagabundo.
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Você poderá apanhar na cara – Por que mãe? Porque sim, Não revide
-
Você sofrerá revistas vexatórias todas as semanas da sua vida. Porque sim.
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Você será chamado de nomes, "esse pobre", "de cor".
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Não ande em grupos pra não ser confundido com arrastão.
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Estude filho, vão falar que as cotas o salvou, que é incapaz. Não dê ouvidos à
eles.
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Se você se esforçar muito no trabalho, será chamado de "menino até que
esforçado" e mesmo que te explorem e expurguem, e que seu salário seja
menor que o de todos... usarão seu exemplo, pra justificar a Meritocracia
canalha que nos imputam.
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Em qualquer furto na empresa você é o suspeito, filho. Sim.
-
Você será mal visto o resto da sua vida na família da sua namorada rica.
Porque sim também..
Sua
mãe vai sofrer violência obstetrícia no hospital. Porque é pobre. Você vai
nascer na contramão da vida. Porque alguma igreja um dia disse que não tínhamos
alma.
Que
nossa cultura era inferior, e no passado mediram nossos dentes e nossas canelas. E nos
deram um terço pra tentarmos nos redimir de termos nascido pobres.
Quando
acharam oportuno, vestiram nossos turbantes e se apropriaram da nossa capoeira.
Quando não nos queriam mais, nos forjaram "livres" na Lei do
sexagenário. E então fomos expulsos da escravidão para a escravidão real.
Aqui
estamos. Somos a história dos centros urbanos, filho. Fomos expulsos do modelo
de cidade e do convívio entre pessoas. Nunca fomos pessoas.
Da
periferia pra periferia seguimos, expurgados.
Não
nos perguntaram onde construímos nossa vida, nossa raiz. Somos sem estória.. A
cada despejo fomos para a região metropolitana que nos colocavam. Em cada plano
de habitação que meia dúzia de engomados ricos escreveram, fomos encaixotados
nos predinhos de 40m². Bem longe. Longe dos olhos dos gringos.
Taparam
nossas casas com tapumes pra Copa do Mundo. Botaram camburão na nossa quebrada,
pra nos lembrar que desde "o fim" da escravidão, não sabem o que
fazer pra tampar nossa existência.
Vão
te dizer que mesmo em Estado de Sítio, você tem direito à ir e vir no seu país
(que seus ascendentes construíram lajota por lajota.. paralelepípedo por
paralelepípedo).
Mas
você será executado à luz do dia filho. Na porta de casa. E eu vou lavar seu
sangue.
Você
será metralhado com 50 tiros. Você e seus amigos pobres. Porque sim. Porque
fazem parte da parcela da população que tem que ter regras pra estar vivo. Que
é achincalhado desde o nascimento.
Nos
exterminarão todos os dias, todos os dias "um crime isolado".
E
jogarão a culpa no policial noiado, no indivíduo sob pressão, na legítima
defesa. A sociedade não reconhecerá que são todos cúmplices da sua morte.
Eles
estão certos, agem em "legítima defesa". Te avisei pra não sair sem a
carteira de trabalho filho. Aliás, nem deu tempo de mostrar né? Te avisei pra
não encarar o polícia.... Também não precisou. É, não deu tempo.
Vamos
entrar pra estatística filho.
Eles
só tem a televisão. Só tem a visão longínqua e deturpada do que somos. Eles
desligarão a TV quando incomodar. Eles não sabem de mim, nem de você.
Só
mais uma mulher sozinha parindo sob violência.
Só
mais um pobre metralhado. O Deus rico que nos perdoe, somos sem alma.
Du caralho Dante!
ResponderExcluirAcho que fiquei duro demais depois de tanto ver isso; de tanto perceber o quão lixo pobres e pretos são considerados pelos governantes e classe média. O que me emociona e me entristece e saber que as pessoas, mesmo as que sofrem a violência do extermínio do negro brasileiro (genocídio é o nome) não conseguem enxergar isso... Acreditam piamente que tudo isso é invenção!!!
Cara, me entristece saber que um dia vou ter que explicar pro Pedro o que é racismo, que ele terá classificar as pessoas como pretos e os outros, ao invés somente de seres humanos e mais nada. Entristece ter que dizer pra ele que a religião de seus antepassados hoje é tida como coisa do Diabo e que o certo é acreditar em um santo que nem de longe se parece com ele ou com algum parente próximo a ele.
Velho... é foda, tá ligado?